Eu fiz
mestrado em Estudos Culturais, sendo que trabalho na linha de Crítica da
Cultura. Em minha dissertação de mestrado, eu analisei a sexualidade feminina
na figura de vampiras e usei como objeto principal de análise a série "The
Vampire Diaries". Eu foco principalmente em questões de gênero,
sexualidade e corpo. Trabalho sempre com mídia de massa porque não acredito que
seja possível classificar cultura como "baixa" ou "alta".
Comentei com a Lola que havia visto e gostado do filme "Cinquenta tons de
Cinza", e ela me pediu para escrever uma resenha. Então fiz uma rápida
análise de algumas questões envolvendo a obra.
Tentativa 1
- 12/02/2015 - 15h50 - sozinha
Dia de
estreia, sessão estressantemente lotada. Experiência horrível. Perdi várias
partes do filme.
§ Ouvi um rapaz na fila dizer que
"a Ana é a piranha do Christian"
§ Uma mulher me chamou de vaca porque
pedi pra não conversar durante o filme.
§ Teve gente rindo ao ver os pelos
púbicos da Dakota Johnson
§ Durante a primeira cena no playroom, quando Ana demonstra sentir
prazer com a chicotada, uma moça disse: "Que vagabunda, está
gostando"
§ Teve gente rindo na cena em que o
Christian cheira a calcinha da Ana.
Tentativa 2
- 15/02/2015 - 13h00 - acompanhada por meu amigo Hiago
Sessão com
poucas pessoas, todas educadas. Consegui ver o filme inteiro sem problemas.
Veredito:
Eu gostei do
filme. Achei muito rápido; muita informação foi cortada. Imagino que quem não
leu os livros vai ter dificuldade de entender algumas coisas. Também achei que
as cenas de sexo deveriam ter sido mais explícitas e detalhadas, mas sei que os
estúdios trabalham muito para reduzir a classificação indicativa de filmes a
fim de maximizar os lucros. Não vejo isso de forma positiva, entretanto. Aqui
no Brasil o filme foi classificado para 16 anos, e BDSM é conteúdo adulto. Não
é questão de moralismo, só acho que é preciso maturidade para lidar com o
desafio psicológico que BDSM envolve.
O filme foi
muito bem feito, com cenas grandiosas. O BDSM é apresentado como algo
misterioso, cuja revelação é objeto de suspense, mas não como algo pecaminoso.
Assistimos à Ana descobrindo sua sexualidade de forma bonita, como sujeito de
seu próprio corpo, e não como objeto. E isso foi visivelmente deliberado,
porque em várias cenas há elementos que a colocam no controle da situação; como
no momento em que eles negociam o contrato ou quando Christian vai amarrá-la
com a gravata e pergunta se é isso que ela quer.
A atuação de
Dakota Johnson foi incrível; ela é uma excelente atriz. Engraçada nos momentos
cômicos, e com olhos que se enchem de lágrimas nas cenas dramáticas, ela trouxe
muita expressividade para o longa.
O Jamie
Dornan também foi bem, mas não tanto quanto ela. E confesso que sinto um certo
prazer nisso, porque durante as filmagens ouvi muito que Dakota, com apenas 24
anos, não "aparentava" ter os 21 da personagem. Mas Jamie, com 32,
não foi em nenhum momento questionado sobre interpretar um homem de 27.
Eu tinha
boas expectativas com relação ao trabalho de Sam Taylor-Johnson, a diretora do
longa, pois ela descreveu erotismo com muita sensibilidade no curta Love you more, 2007. E, de qualquer forma, fiquei
feliz por ter uma diretora fazendo o trabalho porque imaginei que isso
reduziria o "male gaze" nas cenas de nudez. Fiquei um pouco
decepcionada porque, como uma amiga minha pontuou, o corpo da Dakota aparece
muito mais que o corpo do Jamie.
Agora,
quanto à história... Tudo bem, os livros são mal escritos e cheios de clichês
(deusa interior brigando com subconsciente, clichê do príncipe encantado, etc.).
Mas nada que atinge milhões de pessoas é simplesmente desprezível. Por alguma razão,
o conteúdo permite uma identificação muito fácil. E uma vez que virou filme,
boa parte dos problemas da narrativa foram eliminados.
Eu vejo como
um "guilty pleasure"; um produto cultural palatável com uma história que
a gente sabe que vai ter final feliz, mas consome pelo entretenimento. Como é
uma história erótica, não deixa de ser um exercício de sexualidade, e eu acredito
profundamente que isso é saudável. A sexualidade das mulheres é muito reprimida.
E sobre as
acusações de que a história descreve violência doméstica, eu vejo que são
sempre justificadas por trechos descontextualizados do livro. O que é preciso
lembrar é que se trata duma relação BDSM. Christian propõe uma tentativa, e Ana
aceita. Ele não a força, inclusive dá duas palavras de segurança para ela. A
questão é que as atitudes de Christian fazem sentido dentro dum D/S (dominação
e submissão). Nem sempre o D/S se restringe ao playroom. Inclusive ele já havia sido submisso duma mulher quando
começou a praticar BDSM, logo ele não segue a linha goreana.
(Goreana é a
linha de BDSM baseada na série de livros ruins sobre o planeta Gor de autoria
de John Norman. Nesse planeta mulheres, quando não são da realeza, são
escravas, conhecidas como kajiras. As praticantes dessa linha não têm direito a
ter limites nem palavras de segurança.)
A Ana gosta
do playroom, mas não consegue se
entrosar com a dominação fora dele. Ela acaba encerrando a relação, e o
Christian a deixa ir embora. Ele respeita o desejo dela. E depois, quando volta
a procurá-la, ele pergunta se ela não gostava de nada fetichista, e ela admite
que gostava.
Eu não vejo
o Christian como um homem misógino. Em nenhum momento do livro ele trata
mulheres como inferiores. Ele tem alguns momentos de privilégio masculino que
eu acho profundamente irritantes, mas também acho que é um pouco irreal
imaginar um homem que não tenha nenhum defeito. Eu não entendo por que
Christian Grey não pode cometer erros. Ele erra e paga caro por seus erros ao
longo da história; ao meu ver isso faz parte dos conflitos narrativos.
É interessante ninguém mencionar que ele é um homem generoso, que paga faculdade
e tratamento médico para suas ex-subs além de remunerar muito bem seus
funcionários e funcionárias. Ele é um homem com dificuldade de demonstrar
afeto, que acaba se sentindo mais seguro abrindo a carteira.
As tais "trevas"
das quais Ana tanto quer afastar Christian não estão no BDSM, tanto que eles
continuam praticando até o fim da história. Acontece que ele é um homem
atormentado, com dificuldade de se comunicar, que não sabe se relacionar de
forma que não seja BDSM. Como ele não aceita ser tocado em algumas partes do
corpo (afefobia) devido a traumas de
infância, o BDSM se mostrou uma alternativa para ele conseguir viver sua
sexualidade.
E ainda há críticas sobre o
BDSM praticado no livro. Bom, eu vi o Christian dando à Ana a chance de
pesquisar a respeito, tirar dúvidas com ele, estabelecer os limites que
desejasse. Após a cena de spanking ele provê aftercare, quando ela diz a palavra de segurança, ele cessa a
atividade imediatamente. Sendo bem sincera, o Christian é um dominador bem
fofo. Ele beija na boca, se preocupa com o prazer da parceira, é gentil na
primeira vez da Ana...
Mas, de qualquer forma, "50 tons" é um livro de ficção, e não um
manual de BDSM. Nunca vi todas essas críticas contra "A História de
O", uma história com rapeplay e
sem aftercare na qual não vemos a
protagonista consentir. Mas como é um clássico da literatura erótica, é meio
que uma bíblia para a comunidade BDSM.
E independente do livro (ou do filme) ser "ruim", a verdade é que eu
nunca vi uma bosta que agrada público masculino receber o ódio que "50
tons" tem recebido. A gente pode pegar qualquer filme babaca;
"Velozes e Furiosos", por exemplo. Um bando de homens (e umas duas
mulheres) dirigindo feito loucos e algumas partes de corpos femininos
aparecendo de vez em quando para enfeitar as corridas. O ator bonitão até
morreu ironicamente de acidente de carro, o que poderia trazer luz à questão
dos riscos da velocidade, mas eu nunca soube dum movimento de rejeição à
franquia.
É claro que
existe uma questão de gênero aí. E esse fenômeno de rejeição a produtos que
agradam mulheres é conhecido pela indústria cinematográfica, e é por isso que
se evita fazer filmes para mulheres, infelizmente. Nunca vi tanto homem
torcendo o nariz para cenas de sexo. É só dizer que mulheres gostaram dum
produto erótico para que homens o rejeitem. Parece para mim que "50
Tons" virou algo como um judas; muita gente nem sabe por que está
malhando, mas continua só pelo prazer de destruir.